BOLO'BOLO



Viver neste planeta não é tão agradável quanto poderia ser. É óbvio que alguma coisa não deu certo na espaçonave Terra, mas o quê? Talvez um equívoco fundamental quando a natureza (ou quem quer que tenha sido) resolveu pôr em prática a idéia "Ser Humano". Ora. Por que deveria esse animal andar sobre duas pernas e começar a pensar? Mas, enfim, quanto a isso não há muita escolha - temos que aprender a lidar com esse erro da natureza, isto é, nós mesmos. Erros existem para aprendermos com eles.

Em tempos pré-históricos o negócio não parecia tão mau. Durante o Paleolítico, cinqüenta mil anos atrás, éramos muito poucos. Havia comida abundante (caça e vegetais), e sobreviver exigia só um tempinho de trabalho com esforços modestos. Catar raízes, castanhas ou amoras (não esquecer cogumelos) e matar (ou melhor, pegar na arapuca) coelhos, cangurus, peixes, pássaros ou gamos levava duas a três horas por dia. Repartíamos a carne e os vegetais com os outros e passávamos o resto do tempo dormindo, sonhando, tomando banho de mar e de cachoeira, fazendo amor ou contando histórias. Alguns de nós começaram a pintar as paredes das cavernas, a esculpir ossos e troncos, a inventar novas armadilhas e canções.

Perambulávamos pelos campos em bandos de vinte e cinco, mais ou menos, com um mínimo de bagagem e pertences. Preferíamos climas suaves, como o da África, e não havia civilização para expulsar a gente em direção aos desertos, tundras e montanhas. O Paleolítico deve ter sido mesmo um bom negócio, a se acreditar nos recentes achados antropológicos. É por isso que ficamos nele por milhares de anos - um período longo e feliz, comparado com os dois séculos do atual pesadelo industrial.

Aí alguém começou a brincar com plantas e sementes e inventou a agricultura. Parecia uma boa idéia: não tínhamos mais que andar procurando vegetais. Mas a vida ficou mais complicada e trabalhosa. Éramos obrigados a ficar no mesmo lugar por vários meses, a guardar sementes para o plantio seguinte, a planejar e executar o trabalho nos campos . E ainda precisávamos defender as roças dos nossos primos nômades, caçadores e coletores que insistiam em que tudo pertencia a todo mundo.

Começaram os conflitos entre fazendeiros, caçadores e pastores. Foi preciso explicar aos outros que havíamos trabalhado para acumular nossas provisões, e eles nem tinham uma palavra para trabalho.

O planejamento, a reserva de comida, a defesa, as cercas, a necessidade de organização e autodisciplina abriram caminho para organismos sociais especializados como igrejas, comandos, exércitos. Criamos religiões com rituais de fertilidade para nos manter convictos da nossa nova escolha de vida. A tentação de voltar à liberdade de caçadores e coletores deve ter sido uma ameaça constante; e, fosse com patriarcado ou matriarcado, estávamos a caminho da instituição, família e propriedade.

Com o crescimento das antigas civilizações na Mesopotâmia, Índia, China e Egito, o equilíbrio entre os humanos e os recursos naturais estava definitivamente arruinado. Programou-se aí o futuro enguiço da espaçonave. Organismos centralizadores desenvolveram sua própria dinâmica; tornamo-nos vítimas da nossa criação. Em vez de duas horas por dia, trabalhávamos dez ou mais nos campos ou nas construções dos faraós e césares. Morríamos nas guerras deles, éramos deportados como escravos quando eles resolviam, e quem tentasse voltar à liberdade anterior era torturado, mutilado, morto.

Com o início da industrialização as coisas não melhoraram. Para esmagar as rebeliões na lavoura e a crescente independência dos artesãos nas cidades, introduziu-se o sistema de fábricas. Em vez de capatazes e chicotes, usavam máquinas. Elas comandavam nosso ritmo de ação, punindo automaticamente com acidentes, mantendo-nos sob controle em vastos galpões. Mais uma vez progresso significava trabalho e mais trabalho, em condições ainda mais assassinas. A sociedade inteira, em todo o planeta, estava voltada para uma enorme Máquina do Trabalho. E essa Máquina do Trabalho era ao mesmo tempo uma Máquina da Guerra para qualquer um - de dentro ou de fora - que ousasse se opor. A guerra se tornou industrial, como o trabalho; aliás, paz e trabalho nunca foram compatíveis. Não se pode aceitar a destruição pelo trabalho e evitar que a mesma máquina mate os outros; não se pode recusar a própria liberdade sem ameaçar a liberdade alheia. A Guerra se tornou tão absoluta quanto o Trabalho.

A nova Máquina do Trabalho criou grandes Ilusões sobre um futuro melhor. Afinal, se o presente era tão miserável, o futuro só podia ser melhor. Até mesmo as organizações de trabalhadores se convenceram de que a industrialização estabeleceria bases para uma sociedade mais livre, com mais tempo disponível, mais prazeres. Utopistas, socialistas e comunistas acreditaram na indústria. Marx pensou que com essa ajuda os humanos poderiam caçar, fazer poesia, gozar a vida novamente. (Pra que tanta volta?) Lenin e Stalin, Castro e Mao e todos os outros pediram Mais Sacrifício para construir a nova sociedade. Mas mesmo o socialismo não passava de um novo truque da Máquina do Trabalho, estendendo seu poder às áreas onde o capital privado não chegaria. À Máquina do Trabalho não importa ser manejada por multinacionais ou por burocracias de Estado, seu objetivo é sempre o mesmo: roubar nosso tempo para produzir aço.

A Máquina do Trabalho e da Guerra arruinou definitivamente nossa espaçonave e seu futuro natural: os móveis (selvas, bosques, lagos, mares) estão em farrapos; nossos amiguinhos (baleias, tartarugas, tigres, águias) foram exterminados ou ameaçados; o ar (fumaça, chuva ácida, resíduos industriais) é fedorento e perdeu todo o sentido de equilíbrio; as reservas (combustíveis fósseis, carvão, metais) vão se esgotando; e está em preparo (holocausto nuclear) a completa autodestruição. Não somos capazes nem de alimentar todos os passageiros desta nave avariada. Ficamos tão nervosos e irritáveis que estamos prontos para os piores tipos de guerra: nacionalistas, raciais ou religiosas. Para muitos de nós, o holocausto nuclear não é mais uma ameaça, mas a bem-vinda libertação do medo, do tédio, da opressão e da escravidão.

Três mil anos de civilização e duzentos de acelerado progresso industrial deixaram a gente com uma enorme ressaca. A tal da economia se tornou um objetivo em si mesma, e está quase nos engolindo. Este hotel aterroriza seus hóspedes. Mesmo a gente sendo hóspede e hoteleiro ao mesmo tempo.


Primeiro capítulo do Manifesto Bolo'Bolo: "Uma Grande Ressaca".

Clique aqui e leia o manifesto na íntegra.



JIMI TENOR - HIGHER PLANES - 2003
SEND US A LINK!

1 Comments:

At 8 de fevereiro de 2007 às 18:59, Anonymous tupidada said...

ja tem muito tempo que o "ocidente" entrou em crise e decadência; mas o horror da civilização "urbana", "industrial","capitalista", "tecnocrática", não é geograficamente localizado......

o "mal" se espalhou por todo mundo........

mas isso não significa que o mundo, antes de ser contaminado e colonizado pelo "ocidente", fosse uma maravilha........

é bem provável que mesmo antes de Alexandre, Roma, Companhia das Índias Ocidentais, Revolução Industrial e Bomba Atômica, o mundo já fosse ruim, mas o "ocidente" conseguiu piorar e fuder com tudo até o extremo absoluto do horror......

o socialismo, o comunismo e o anarquismo, todos três filhotes do romantismo, sonharam em "purificar" e "transformar" o mundo...... sonharam com a "grande revolução", com a "utopia", com a "nova era", com "o despertar da consciência", e por aí vai......

desde o séc. XVIII que há na "cultura ocidental" um movimento de "contracultura", uma tentativa de romper com a "tradição", de quebrar e revirar os alicerces da dominação política e cultural, um esforço tenso para modificar radicalmente (pelas raízes) as premissas de uma civilização que reivindicou para si um caráter de universalidade e superioridade........

Bolo-bolo é uma manifestação deste esforço, mesmo que não escape de uma das taras e obsessões fundantes do "ocidente": a vontade de abarcar tudo, de engolir tudo, de cercar tudo, de conquistar tudo, de alcançar tudo, de conhecer tudo, de atingir tudo....

Bolo-bolo conserva a pretensão tipicamente "ocidental" de ser um movimento "mundial", "planetário", "global", "transcontinental", que afete todos os lugares da "terra"...

esse delírio, típico de bestas quadradas como Alexandre e demais suínos imperialistas, ainda não foi devidamente analisado pelos pseudo-revolucionários que escrevem manifestos e elaboram mil teorias "radicais".....

todavia, eu gosto de muitas idéias presentes no projeto de Bolo-bolo, e imagino que seja uma das melhores teorias políticas do final do séc. 20........

outras idéias, autores e manifestos políticos interessantes desse período, que considero uma leitura estimulante, são o Manifesto Contra o Trabalho, do grupo Krisis, da Alemanha, o conceito de Estado segundo Eduardo Colombo, a noção de Indivíduo desenvolvida por Alberto Lins Caldas e seus textos sobre Sartre e a liberdade de expressão, o lema de Roberto Freire "tesudos, uni-vos", o municipalismo libertário de Murray Bookchin, a crítica contra o carro feita por André Gorz e o grupo inglês Reclaime the Strets, o estudo dos provos holandeses feito por Matteo Garnnacia, as "três ecologias" de Guattari, o já clássico "A sociedade contra o estado" de Pierre Clastres, o anarquismo esotérico e místico de Hakim Bey, entre outros......

para quem se interessa em autores do séc. XIX, eu recomendo uma olhada em Stirner, Thoreau e Lafargue...........

mas essas leituras são para quem pretende manter-se na órbita do "ocidente".......

caso contrário, pare de ler e vá para Croatã............

 

Postar um comentário

<< Home